domingo, 3 de junho de 2007

Andorinhas


Narciso veio de longe, dos reflexos verdes, do limo. Chegou atento e altivo, pisando o ocre- pedra. Veio da semente, sem na mente dizer o que queria. Banhou-se nas colônias de lua, que hidratavam a minha pele. O sol e o canto dos pardais anunciavam a majestosa chegada. A boca do meio-dia, ainda entreaberta, esperava a voz da tarde que cheirava a bule com chá de capim-santo. O cheiro do mato orvalhado pelas gotas fugidias de chuva espalhou-se pelas veredas dos raios solares.
Entre o intermediário das dores, de mais um dia, aguardei os espelhos refletirem sobre mim numa ânsia de fome e sede enquanto os galhos da algarobeira, repleta de filhos-frutos, balançavam sob o impulso do vento.
A aragem abrasadora desfiava linhas em um tecido de solidão. Narciso apeou sobre a serra e tirou as vestes de si mesmo. Eu o vi sem manta, apenas com a musculatura que Deus lhe deu. Sua haste em repouso, exibindo o brasão, parecia à primeira vista, um pássaro no ninho. Olhei discretamente para o conjunto da obra, assim como todas as andorinhas, que por ali, sobrevoavam em busca de seu bando.
O açude de pouca água - macho poço – esperava as mãos-conchas daquele certo homem nu. Ele abaixou-se, curvando-se até alcançar as aguazinhas que desfilavam numa leve correnteza e mirou-se. Seu rosto ainda em estado de sono era lavado delicadamente e eu somente o observava, até que ele vendo-se, engoliu em seco a imagem cansada de um viandante solitário.
Aproximei-me. Usava um vestido de chita e meus pés acariciavam a terra, suavemente. Ele virou-se para mim, tirou-me a veste em pensamento e com seu jeito de negro arco-íris que costura girassóis de manhã, abraçou-me ainda em pêlo. Senti-me égua nua no meio do sertão.
Os galhos brancos do Seridó ultrapassavam as fronteiras e protegiam a plantação castigada pelo estio. Bravo algodão, desbravadoras mães férteis. Molhei-me duplamente e nessa ambigüidade, deixei que a cena iniciasse o seu primeiro ato.
As pernas do cavalheiro dos sonhos atavam-se as minhas, logo que a gruta de Vênus abria-se para a chegada do mito. As bocas salivadas, pareciam duas canoas, escorregando no leito de um imenso rio. Deixei-me navegar e os continentes de minhas formas, ainda inavegáveis, tornaram-se vias de acesso ao ponto G.
O navio adentrava, desvirginando aqueles mares. Narciso, cujo nome até então desconhecia, fazia de mim a sílfide que lhe deu a beleza e o encantamento. Contudo, não menos que de repente, o espelho partiu-se, adentrando a escuridão lamacenta daquele açude de águas temporãs.
Voltei à realidade e, como nada podia fazer, a não ser guardar na memória aquele encontro, igualei-me às andorinhas e saí voando em busca do meu bando.



Maria Maria

Um comentário:

Jeanne Araujo disse...

Um amor assim, quente como o sertão e abrasador como o sol que sulca nossa face, tinha de sair de uma sertaneja arretada de boa nas letras e nos sentimentos. Bjão.